Pós-operatório

Agulha no peito. Feito um tipo de cirurgia que me submeteram sem minha permissão. Um transplante de alma, de coração, um retirar de glândula pineal. Facada no peito. Bisturi a cortar fundo quem um dia eu fui - ou tentei ser. Quando aplicarão a anestesia? Quando em fim ficarei de repouso absoluto? Dizem que o pior é o pós-operatório, é quando realmente se sente as dores. Esse pós-operatório ta demorado pra cacete. Talvez seja um câncer, uma leucemia, sem cura definida. Talvez seja necessário a fé da melhora para que se melhore. Agulha e linha para costurar o estrago. Arrancaram de mim a minha inocência, e doeu fundo. Sem inocência a gente envelhece rápido demais. Sem inocência a infância perde seu brilho, vira infantilidade. Arracaram-me talvez o útero. A possibilidade de coração bater no ventre. Não teria mais motivo. Solidão a parte de quem sou. Fizeram cesárea, e em vez de um novo fruto, pariram-me a paz, quietação. Ai ficou esse nó na garganta, esse aperto no peito, esse ciclo menstrual de quem não tem gestação, tem apenas a tpm da dor de si mesma. A tpm da dor do parto realizado. Insconstância. Talvez esse deveria ser meu nome. Sinto as contrações, mas essas não são intra-uterinas. Contrai-se algo forte no peito. Me pergunto como não faleci na mesa de cirurgia. A tendência do pós-operatório é a melhora, mas tenho medo da infecção hospitalar, causada pela cicatrização mal feita. Qual o melhor remédio para acelerar cicatrização? Vão para a puta que pariu com o tempo. A resposta das coisas não é o tempo, é o amor. Não é o tempo que cura. O tempo também envelhece e mata. Corrói devagar e profundamente cada veia de angustia. Grito silenciosamente as minhas dores do parto mal feito, não há ninguém na sala de cirurgia para me dar a mão. Nunca houve, nunca haverá. Nascemos sozinhos, morreremos sozinhos. E de nossas dores, alegrias e experiência, do nosso pós operatório só nós sabemos. Quais são as delícias da cirurgia? A espera que depois, depois de tudo seja bem melhor. Ou a espera de que continuemos, mesmo que debilmente. Quando saber se é melhor a cirurgia ou o cessar rápido do sofrimento definitivo? E se ao invés de arrancarem na cesárea o fruto que não tenho amputaram-me a perna? Erros médicos acontecem. Permaneceria assim com o tumor que carrego e ainda a falta do membro que me era necessário. Que se foda, não tenho vocação para Polianna. To mais para Byron, ou um Baudelaire qualquer. Clarice me entenderia, Caio me abraçaria. Será que Xavier me curaria? Ou João Paulo, agora que é santo e realiza milagres? Talvez erraram o tipo de cirurgia, o parto poderia ser normal, com pós-operatório bem mais rápido e tranquilo, e a felicidade da nova vida. Mas roubaram-me o fruto advindo. Não me apresentaram a nova vida. Ou perdi a visão na hora do parto, o tato, a audição, e ainda não fui capaz de perceber a nova vida que veio. E nova vida é sempre sinal de bonança, alegria, paz. Certo?