com lentes
binóculos
óculos
procuro ver
o que com dificuldade
quero enchergar

com a ponta dos dedos
apalpar a dúvida que surge

azul de calmaria
de límpido
de dúvida

reacender a dor
que agora pode ser alívio

na ponta dos dedos
fazer a conta dos dias

que não foi
que me alivia
que mata em um só golpe
o fantasma do monstro
que me assombrou

agora assombra apenas a dúvida

da conta dos dias que não sei ao certo
se foram ou não foram ou serão

para a paternidade de um outro alguém

(palavras que só eu entendo, porque são de dentro de mim, como vômito.)
não está certo. nunca estaria. o que antes por mais absurdo que fosse fazia sentido. agora a dúvida regurgita e não há mais ordem nenhuma. (se ha um deus que rege por nós ele curte uma pegadinha). mortes, nascimento, dores. cada um na sua medida - desmedida. o que no depois de amanhã será dessa situação toda. as frequencias estão se movendo cada hora em um ritmo. louco. sério. caótico. organizado. deve haver a chave certa. em tempos como esse se acredita em tudo e se vira niilista. no mesmo espaço in loco do peito. de cristão à ateu, tudo faz sentido. lagos de nós mesmos. cabe espaço até para misticismo. o tarot também tem a sua verdade. e eu a minha mentira. realidade que não cabe em mim. então explodo explodo explodo em mil partículas de pó.

feito reveillon.
não poderia dizer que sou eu. não cabo no meu ventre embora queira. refúgio do que penso que sou. olho no espelho e essa não sou eu, é a imagem do que me fizeram, é o que imagino que sou. e sou uma para cada um que me conhece - palavras repetidas. nada é mais que repetição. leio caio, kerouac, bukowisky, milton, blake, clarice, fernando. tudo já foi dito antes, em maior maestria por eles. estou entre aquilo que me fizeram e o que eu supostamente queria ser. não sou eu quem me fito no espelho, é alguma outra parte de mim que desconheço. não sei dos meus gestos, nem mesmo da minha voz. não sei de mim. sou tantas para cada sentimento que me cabe. parir o ventre vazio do que sou. sou os rabiscos que desenho sem forma, as letras que escrevo sem pudor, a roupa jogada no quarto, a poeira escondida no canto que não varro, a lista de coisas que deixei por vazer e várias outras que fiz de última hora sem o devido capricho. um dia, quem sabe, dou de cara comigo e me reconheço. esquina por esquina, passo por passo, palavra por palavra, silêncio por silêncio. movida pela música que insistentemente toca em minha cabeça. salvem bowie. 'just rebember, lovers never lose'. o tempo corre, e não pude ainda tomar nota de mim. corro também, movida por uma pressa que vem de não sei onde. uma confusão. não tive tempo para mim. não pus minhas idéias em ordem - se é que ha alguma ordem. "o que quero dizer, mas o senhor não comprendem, é que não tenho culpa nenhuma".

vomito palavras de terceira.

Pós-operatório

Agulha no peito. Feito um tipo de cirurgia que me submeteram sem minha permissão. Um transplante de alma, de coração, um retirar de glândula pineal. Facada no peito. Bisturi a cortar fundo quem um dia eu fui - ou tentei ser. Quando aplicarão a anestesia? Quando em fim ficarei de repouso absoluto? Dizem que o pior é o pós-operatório, é quando realmente se sente as dores. Esse pós-operatório ta demorado pra cacete. Talvez seja um câncer, uma leucemia, sem cura definida. Talvez seja necessário a fé da melhora para que se melhore. Agulha e linha para costurar o estrago. Arrancaram de mim a minha inocência, e doeu fundo. Sem inocência a gente envelhece rápido demais. Sem inocência a infância perde seu brilho, vira infantilidade. Arracaram-me talvez o útero. A possibilidade de coração bater no ventre. Não teria mais motivo. Solidão a parte de quem sou. Fizeram cesárea, e em vez de um novo fruto, pariram-me a paz, quietação. Ai ficou esse nó na garganta, esse aperto no peito, esse ciclo menstrual de quem não tem gestação, tem apenas a tpm da dor de si mesma. A tpm da dor do parto realizado. Insconstância. Talvez esse deveria ser meu nome. Sinto as contrações, mas essas não são intra-uterinas. Contrai-se algo forte no peito. Me pergunto como não faleci na mesa de cirurgia. A tendência do pós-operatório é a melhora, mas tenho medo da infecção hospitalar, causada pela cicatrização mal feita. Qual o melhor remédio para acelerar cicatrização? Vão para a puta que pariu com o tempo. A resposta das coisas não é o tempo, é o amor. Não é o tempo que cura. O tempo também envelhece e mata. Corrói devagar e profundamente cada veia de angustia. Grito silenciosamente as minhas dores do parto mal feito, não há ninguém na sala de cirurgia para me dar a mão. Nunca houve, nunca haverá. Nascemos sozinhos, morreremos sozinhos. E de nossas dores, alegrias e experiência, do nosso pós operatório só nós sabemos. Quais são as delícias da cirurgia? A espera que depois, depois de tudo seja bem melhor. Ou a espera de que continuemos, mesmo que debilmente. Quando saber se é melhor a cirurgia ou o cessar rápido do sofrimento definitivo? E se ao invés de arrancarem na cesárea o fruto que não tenho amputaram-me a perna? Erros médicos acontecem. Permaneceria assim com o tumor que carrego e ainda a falta do membro que me era necessário. Que se foda, não tenho vocação para Polianna. To mais para Byron, ou um Baudelaire qualquer. Clarice me entenderia, Caio me abraçaria. Será que Xavier me curaria? Ou João Paulo, agora que é santo e realiza milagres? Talvez erraram o tipo de cirurgia, o parto poderia ser normal, com pós-operatório bem mais rápido e tranquilo, e a felicidade da nova vida. Mas roubaram-me o fruto advindo. Não me apresentaram a nova vida. Ou perdi a visão na hora do parto, o tato, a audição, e ainda não fui capaz de perceber a nova vida que veio. E nova vida é sempre sinal de bonança, alegria, paz. Certo?
"E até para morrer você tem que existir"

- você sabe viver - ela disse e sorriu.
melancolia traspassada em seu olhar, pois ela bem sabia, não sabia viver, sabia morrer e ia morrendo demoradamente nos outros, uma morte em cada esquina, um novo ser em cada encontro. morte e renascimento em cada suspiro. bella diria toda noite a gente morre, todo dia a gente renasce.